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Quase as Vuvuzelas da Selecção
um texto de José Carlos Barros
http://casa-de-cacela.blogspot.com
Eram uma espécie de vuvuzelas daquele tempo: o metal em vez do plástico, a mesma forma aproximadamente cónica, um mesmo som esganiçado a abrir e a fender na propagação em eco. Sim, mais pequenas. Vendiam-se a quinze tostões na Feira dos Santos. Um sucesso. Um rapaz, primeiro, e depois outro, e depois todos os rapazes da Vila compraram a gaita – ou comprada lha traziam tios e padrinhos. Durante os dias seguintes não se ouvia outra coisa, da Senhora da Livração ao Jardim dos Correios, dos Correios subindo em duas direcções até ao Alto da Ribeira. O Mestre Zé Serralheiro, de porta aberta ao Largo do Toural, já não suportava pela oficina adentro o som de bandalheira cafre das cornetas. E então chamou um dos rapazes, o mais afoito e comandante de entre todos, e explicou, a voz muito dada, que os instrumentos de sopro lhe pareciam excelentes mas um cibo desafinados. Interrogado logo pelo jovem se não fazia o favor de afinar-lhe a gaita, explicou o Mestre que sim, com muito gosto, mas então que as juntasse todas e o serviço cumpri-lo-ia de uma só empreitada. Assim se fez; e o grupo em coro, sob o comando do moço afoito, foi ao Mestre entregar as gaitas num saco de lona de espantoso volume. Os rapazes à porta – que a nenhum foi dado nunca atravessar a pedra de entrada da oficina a mexer em martelos e escopros, maçaricos e rebarbadoras, vielas ou carretos de mudanças – e o Mestre a juntar sobre uma chapa metálica de dois centímetros de espessura, primeiro alinhadas, logo após em pirâmide cuidadosa, vinte e duas gaitas de quinze tostões compradas na Feira dos Santos de Chaves. A olhá-las de lado. Mas lá lhe terá parecido que o método não seria o mais adequado e voltou a enfiar as gaitas no saco, mexendo-o para que ocupassem bem os vazios, e enfim poisando-o na chapa. Foi o tempo de um ai: ergueu o maço de ferro muito na vertical e arremessou-o violentamente sobre o saco ouvindo-se um estridente barulho espatifado de cornetas. Mestre Zé Serralheiro respirou fundo; olhou os moços ainda suspensos do gesto; e explicou-lhes, numa voz vagarosa e muito adocicada, «que agora é que tocavam afinadinhas que nem os clarinetes da Banda do Couto».
E até hoje era proverbial este silêncio dengoso da Vila, espalhado das ruas e largos aos pinhais do Padrão, da Seixa ao Voluntário, do Noro até Onde-se-Juntam-os-Rios. Até hoje: porque ainda há bocado o Inácio saía da ourivesaria e viu uns oito moços a tocar vuvuzelas da Selecção em esganiçado esforço nas escadinhas da Câmara. Temeu o pior. Parou por instantes a caminho do Arsénio e não se teve (dizendo primeiro: «uuuui») que não lamentasse a falta do Mestre Zé Serralheiro: «ou muito me engana o ouvido ou estas gaitas estavam era a precisar de ser afinadinhas na velha oficina do Toural».
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Dois sonetos
sobre os impossíveis regressos
um poema de José Carlos Barros
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Às vezes é preciso regressar às coisas simples:
às folhas das árvores do jardim das freiras
ou à sombra estendida na sissi em dias de feira
a beber uma taça de branco por entre guarda-chuvas
pendurados nas costas das cadeiras e chapéus
de feltro a um canto da mesa deixando poisar
a meia-dúzia de pastéis; às edições do notícias
de chaves a duas cores e aos matraquilhos
e às máquinas de jukebox do tabolado e ao labirinto
das estantes do silva mocho onde chegámos
a suspeitar que havia de tudo; e aos táxis pretos
e verdes olhando-se da escadaria do quiosque enquanto
em duas caixas se puxava o brilho aos sapatos
fazendo estalar um pano e depois ouvindo-o ranger
pela fricção num muito rápido e mágico movimento
oscilatório. Às vezes é preciso regressar às coisas
simples: ao jogo do sapo no faustino ou às girafas
da romana e ao foyer do cine-teatro no intervalo
do expresso da meia noite com o brad
davis que por muito tempo foi o nosso herói muito
além do sport ou da ibéria e da rua de santo antónio
e das cidades todas de espanha e do estrangeiro. E regressar
(sobretudo) ao que não se diz num poema
quando a exaltada juventude nos levava por onde
mais os erros e os perigos se desenhavam.
Oh mas quem me dera regressar verdadeiramente
e saber o que sei hoje para repeti-los todos:
todos os erros e todos os perigos.
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Um regresso em finais de Março
poema de José Carlos Barros
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1.
Parecem vir de um tempo anterior ao tempo
os olhares destes amigos que se encontram
numa casa de Santo Amaro
às nove da manhã de sexta-
-feira: abrem os livros e procuram apenas
o que não está escrito
nas páginas dos livros.
2.
Não é outra coisa
Isso a que chamamos tempo:
empurra-nos para dentro de nós mesmos
quando mais desejávamos disparar a pedra
que vai de uma a outra margem do rio
sobre a copa dos amieiros altos.
3.
Talvez a cidade tivesse mudado pouco
durante os últimos sucessivos anos
e muito no modo como
pareciam iluminadas as sílabas das palavras
quando por esse tempo dizíamos
em voz alta o nome do Largo das Freiras.
Uma fotografia antiga do Rio Tâmega
e do Bairro da Madalena
um poema de José Carlos Barros
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i.
O barco está errado: o fotógrafo
(anónimo?) o terá pressentido no exacto momento
do disparo. A vela, esse belíssimo triângulo
isósceles, deveria inscrever-se no estrito
espaço escuro entre as duas casas
e separar-se dos elementos verticais do fundo
de que acaba por parecer
fazer parte: ligeiramente mais à direita.
E o seu reflexo na água, assim,
cortaria a mancha de sombra
como uma afectuosa cicatriz ténue.
ii.
Há um momento de angústia: esse em que o fotógrafo
acredita ter-se encontrado ele mesmo
com o momento único e irrepetível.
O autor deste retrato o pressentiu
por um instante: mas disparou tarde: quando
já o barco avançara. Bem certo é
que chegamos quase sempre tarde
às coisas perfeitas que nos esperam.
iii.
O jovem está errado: há uma identidade
que se perde, uma individualidade
que se esbate: a sombra vertical
de uma das árvores, reflectida no rio, não deveria
tocar a sua cabeça e misturar-se nela.
iv.
O barco e o observador são apenas um
e mesmo elemento da composição: o barco
não existe sem o jovem que o surpreende
num lento movimento à superfície
das águas; e o olhar do jovem não existe
sem a imagem de espelho devolvida
aos seus olhos pela vela muito branca, leve,
esguia, quase imaterial.
v.
O círculo e o quadrado de luz, à direita,
sob o último arco da ponte, estão
errados: rasuram o fulgor da estreita linha
iluminada do tronco da árvore em primeiro plano:
como se a não deixassem erguer-se inteira
para o céu do fim de tarde;
como se lhe impedissem a delimitação
da pressentida fronteira; como se o fogo irrompesse
por dentro da fotografia
onde mais não deveria existir
que um lume vagaroso.
vi.
Tudo o mais está certo: a ponte
que parece continuar para onde já não está
à força de aterros sucessivos
e alicerces; o volume dos edifícios num dinâmico
equilíbrio de vãos e coberturas, empenas
cegas, trapézios; e o rio,
claro, que vem de Espanha
e resiste aos erros de um retrato em que,
como quase sempre, não foi possível unir o tempo
e os fios todos
das múltiplas variáveis em jogo.
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A propósito dos desastres
um poema de José Carlos Barros
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i.
em dezembro de dois mil e nove o que procuramos
na rua de santa maria ao fim da tarde além do perpianho à vista
e das varandas verdes das casas recuperadas que não seja
o poço fundo de passar o tempo por nós
como sob as pontes
a água?
ii.
em mil novecentos e trinta e nove já a administração central
sob vigência de sua excelência o marechal carmona
e em plena ditadura nacional
se gabava de desconcentrar os serviços. hoje o debate
sobre a regionalização não deveria ser contaminado
pela discussão da proficiência de ccdr’s ou arh’s
e não sei que transferências de competências centralizadas
sob pena de tomarmos a nuvem por juno
e apanhar-nos a chuva enquanto nos distraímos
a encanar a pata ao anfíbio.
iii.
agarramo-nos à memória e vivemos dela
ou procuramos viver a jogar às escondidas nas veredas
ou nos bosques de caducifólias
a partir do momento em que os imprevistos
telefonemas dos amigos
o mais certo é darem notícias de perdas sucessivas
ou acarrearem inventários de irreparáveis danos em
vez do relato das sombras das árvores
erguidas nas margens dos rios
onde todos os anos jurámos
regressar.
iv.
dona teresa de jesus teixeira rumou de chaves a mirandela
nesse preciso ano de mil novecentos e trinta e nove
e aí apondo-se retrato carimbado e
dilucidados dados pessoais
no fim da jornada trouxe consigo o cartão profissional
indispensável a que o tribunal dos
géneros alimentícios (assim uma espécie de primeva asae)
não começasse antes ainda de averiguar
corruptela nos comercializados produtos alimentares
a caçá-la logo por falta de licença.
v.
de uns senhores sabemos que devem topar uma grande
novidade no facto tão prosaico de já em
mil novecentos e trinta e um
a reorganização do ministério da agricultura
nos seus pressupostos realçar a necessidade imperiosa
de descentralizar os serviços: e por isso a
dona teresa de jesus teixeira do antigo pasteleiro
com sede em chaves na rua de santa maria
lhe bastou rumar a mirandela ao invés
de perder-se nos corredores em lisboa da inspecção
técnica das indústrias e comércio agrícolas.
vi.
num fim de tarde de dezembro de dois mil e nove
o que procuramos na rua de santa maria
é já o que perdemos: o antigo
pasteleiro com recortes velhos de jornais pendurados nas paredes
e uma sombra que o mais certo é começar no mais
fundo do coração de cada um de nós
a acompanhar-nos em redor de um prato de pastéis aquecidos
e de uns bucólicos e insípidos finos
com que persistimos em enganar-nos
a nós mesmos.
vii.
isto tudo descobri há bocado
(preparando-me para escrever em verso rimado
o relato inédito dessa manhã de domingo
de mil novecentos e quarenta e dois
em que dona teresa de jesus teixeira contou pormenorizadamente
a maria do carmo ferreira da silva fragoso carmona
o segredo verdadeiro dos pasteis de chaves)
ao receber o telefonema de um amigo
que se resumiu a versar os desastres
a que nos começamos vagarosamente a habituar
e a acomodar.
Uma Conversa Quase Surrealista no Taró
texto de José Carlos Barros
http://casa-de-cacela.blogspot.com
-- Nem sempre cortávamos uma árvore
-- Cortar uma árvore é sempre um crime.
-- de raiz. Às vezes cortávamos a parte final de um ramo com a configuração de uma pequena árvore. Era, de qualquer modo,
-- Isso vai dar ao mesmo.
-- a nossa árvore de Natal. Este ano, depois de tantos anos,
-- Vai dar ao mesmo. E
-- vou cortar de novo uma árvore.
-- é de uma irresponsabilidade cívica incrível. Podes comprar uma árvore ecológica, podes tu próprio construir uma árvore reciclável.
-- O Natal vem logo após o solstício do Inverno. Esse momento mágico em que a sombra, enfim,
-- Não acredito: lá vem de novo
-- cede ao domínio da luz. A luz em vez da treva. O dia, de novo, maior que a noite. Como num ritual
-- o discurso da ruralidade, da suposta supremacia das berças.
-- de passagem. De rapazes que querem ser homens. De homens que querem ser deuses para que possam apenas ser homens. Na amplitude dos montes,
-- Não acredito: este discurso retrógrado, cheio de lugares comuns, vindo de quem mais devia estar próximo da Natureza, da compreensão
-- nas sucessivas cumeadas, nos vales profundos, no silêncio a atravessar encostas e colinas e valados. O dia maior que a noite. De novo. Como um archote aceso
-- dos fenómenos ambientais. E, mesmo, de um ponto de vista filosófico: comprar uma árvore de plástico, em vez de destruir uma árvore verdadeira, é um sinal
-- contra a adversidade. E então, nesta inesperada (e necessária) desordem, saímos à rua. No Natal, em Trás-os-Montes, saímos à rua. E portanto
-- de esperança num mundo condenado pelo dióxido de carbono,
-- é tão importante uma árvore. Uma árvore que nós próprios cortámos na floresta. Nos montes. Uma árvore verdadeira. Com as suas raízes e a sua seiva. Uma árvore que guarde a casa enquanto saímos à rua. E, na rua, é o fogo (de uma outra árvore) que se ergue na noite. Em redor do fogo nos reunimos. Na estrada. No Meio da Aldeia. Num largo. Em redor de um dos três únicos elementos de culto.
-- pela perda irreparável da biodiversidade, pelas alterações climáticas. É também uma questão de exemplo.
-- Porque em Trás-os-Montes os quatro elementos são três: o pão, a água e o fogo. E o momento, os momentos, os dias seguidos até aos Reis, são mágicos. Porque uma distância, de súbito, parece diluir-se em redor do fogo: entre o que é possível tocar
-- Por isso não faz sentido cortar uma árvore. Até do ponto de vista
-- e o que pressentimos. Entre a pedra e o intangível. Entre o milagre e a memória de uma árvore cortada na serra. E é nesse intervalo, nessa fronteira,
-- da educação ambiental. Repito: do exemplo que damos
-- nessa membrana fina de silêncio que o milagre acaba por impor-se. E é por isso, depois de tantos anos, que vou eu mesmo cortar uma árvore. De novo. E deixá-la em casa. A guardar a casa.
-- a uma geração que precisa de tomar consciência do grave problema ambiental que atravessamos.
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