Sexta-feira, 28 de Maio de 2010

Discursos Sobre a Cidade - 100 - Por Gil Santos

 

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CASSAPOS


Manuel Fagundes Arrebita, era um preguiceiro. Nunca fez nada que jeito tivesse do que exigisse puxar pelo lombo bem entendido, porque no negócio era um portento. Nasceu na rua Verde, sabe Deus quando. Órfão temporão de pai, sua mãe consumiu-se ainda nova por mor de o criar desparasitado e bem nutrido. Finou-se pouco antes de o ver nas sortes, altura tida como a do verdadeiro desaninhar.


Até àquela altura polia esquinas, o mesmo é dizer não fazia a ponta de um corno. Parava pelos Quadradinhos, seu escritório, sempre atento às conversas dos engraxadores e aos negócios dos aldeãos que nos dias de feira faziam do Arrabalde o ponto de encontro. Mestre da manigância fazia da rua escola e mais tarde da tropa universidade.


Pelos dezanove anos assentou praça no Quartel de Infantaria Dezanove, onde refinou a arte de prestidigitador no contacto directo com a corja do ardil. A tropa manda desenrascar e ele rapidamente se desenrascou.


Quando um mancebo assentava praça, era-lhe distribuído, para além do fardamento, uma panóplia de outros artefactos que ficavam à sua responsabilidade por todo o tempo que se encontrasse a cumprir o serviço militar. Tinha de os apresentar no dia do espólio, isto é de passagem à disponibilidade ou à peluda como se dizia na gíria da caserna. Se esses equipamentos não fossem apresentados, havia que os pagar e a bom preço. Ora ninguém estava para aí virado, pois o dinheiro era ainda mais escasso do que é hoje. Por isso, sempre que alguma coisa desaparecia, era costume fazer-se uma de duas coisas: ou se mantinha o bico calado e na primeira oportunidade subtraía-se a outro, que provavelmente já a havia fanado a um outro e assim sucessivamente, ou então comprava-se no mercado negro, de preferência por uma bagatela.


O Arrebita não precisou de muito tempo para se enfarinhar no negócio. Prestes se transformou num autêntico padrinho napolitano. À sua conta tinha para mais de uma dezena de larápios, a quem comprava a mercadoria por tuta e meia e que depois metia no armazém-loja que tinha nos baixos de sua casa. Este estabelecimento só abria as portas a gente de confiança. Quem roubava sabia a quem vender e quem precisava a quem comprar. No seu supermercado havia de tudo: fardas completas de qualquer número, bonés e botas, sapatilhas, cintos e cartucheiras, balas granadas e cantis, baionetas, marmitas, garfos e colheres, havia inclusivamente peças avulsas de armas como culatras, canos e coronhas nomeadamente da conhecida Mauser Vergueiro. Não faltava nadinha. Se no momento não houvesse em stock, o cliente que ficasse descansado, dentro de um ou dois dias seria servido. O negócio era próspero enquanto andou na tropa. Quando passou à peluda enfraqueceu por ausência do cheiro da caserna. Mas ainda assim dava para viver e isso é que interessava.


Arrebita, era uma verdadeira toupeira do mercado subterrâneo, um dinossauro da compra e venda de material de guerra. Dizia-se que chegavam a vir do Porto à procura da sua mercadoria. Vivia bem o lapantim e sem fazer nada. Lábia não lhe faltava e se fosse preciso trabalhar noutro ramo, por exemplo armar estrangeirinhas para ludibriar bagalhuços aldeãos, não se ensaiava nada.


Por falar em conto do vigário lembrei-me agora de uma que lhes conto.

 

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Estando um dia no Arrabalde, Manuel ouviu dizer que o governo tinha contratado uma série de engenheiros para que fossem pelas aldeias do concelho actualizar as medições dos prédios rústicos para rectificação das matrizes prediais e respectiva actualização das contribuições, décimas, como à época se chamavam.


Viu a dele boa: iria ser engenheiro das medições!


Reuniu com o sócio Necrotério, antigo camarada de caserna, seu braço direito e juntos montaram a estrangeirinha:


Primeiro era preciso vestirem-se como verdadeiros engenheiros.


Depois afinar a linguagem técnica.


Por fim arrear as montadas e cavalgar por essas aldeias além.


Assim foi.


Foram ao Sarmento e botaram os metros de tecido necessários para dois fatos que o alfaiate Queirós haveria de fazer à medida. Camisa branca e gravata a dizer com a fazenda. Depois às Curadoras: botas cardadas e polainicos. No chapeleiro da rua Direita mercaram finos chapéus de felpo.


A seguir ensaiaram o paleio técnico, o que não foi nada difícil por serem especialista do endrominanço.


Por fim arreios a preceito para os cavalos, comprados nas lojas da especialidade à muralha do Baluarte do Cavaleiro.


Combinaram nomes falsos, engenheiro Teodoro para um e Torcato para outro.


No dia combinado abalaram serra arriba.


Iniciaram a saga pelo Barroso. Pedrário, primeira aldeia para experimentar. Correu de feição, continuaram, apurando cada vez mais o guisado.


E como faziam?


Chegavam ao lugar e procuravam o Regedor por mor de saber quem eram os grandes proprietários e ainda para dar peso institucional à coisa. Depois instalavam-se em casa de um dos mais ricos da aldeia. Armados de pasta, bloco de notas e teodolito, iam por essas courelas fora, acompanhados do proprietário e vai de fingir que mediam, que escrevinhavam e que tiravam os azimutes. Interim iam dialogando sobre a metragem e o imposto a que correspondia. Criavam assim o ambiente favorável para que os lavradores percebessem que pagariam grossa maquia de décima. Claro… a não ser que estivessem dispostos a compor a coisa com uns presuntos, uns salpicões e uma notitas de cem. A estratégia resultava, porque uma coisa era presentear uma única vez os engenheiros e outra a vida inteira o Estado!


O negócio corria de vento em popa. Os melros engordavam a olhos vistos e os proprietários contentinhos porque nalguns casos ainda iam pagar menos do que o que desembolsaram os seus avós.


Negócio perfeito.


Acabando numa aldeia partiam para outra levando o alforge repleto e a carteira anafada.


A coisa foi andando.


Quando viram que a teta barrosã tendia a secar e até mesmo para não dar muito nas vistas, viraram-se para o Planalto do Brunheiro.

 

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Claro está que naquela época as notícias corriam à velocidade do caracol. Contudo, mesmo assim, feira a feira não deixavam de se actualizar as novidades. Evidentemente que quem tinha sido favorecido pelas medições e eram quase todos os que tivessem por onde pagar, calavam-se como ratos. Porém, um ou outro lá se ia descaindo com os amigos e a notícia foi-se espalhando.


Ao Ti Moreiras do Carregal, pequeno proprietário, conhecedor de meio mundo, batido pelas balas do boche na guerra dos dezassete e curtido pela miséria dos campos de concentração alemães, chegou a notícia pela boca de um camarada barrosão que era um grande proprietário rural de Vilar de Perdizes e o acompanhou na Saga de Chaves a Copenhaga, nessa maldita Grande Guerra.


— Ó Moreiras, sabes que um destes dias, apareceram-me lá por Vilar dois engenheiros das medições! Olha que engrampei bem os filhos da curta! Mamaram-me umas chouricitas e uns presuntos, mas consegui que baixassem para metade as áreas das minhas poulas. Estou que vou pagar ainda menos de décima do que o que pagava inté aqui.


— Não me digas Aniceto! À minha terra ainda não chegaram. Conta-me lá os pormenores para eu fazer o mesmo.


Contou tudo timtim por timtim.

 

Passado uns tempos e umas feiras mais, já se comentava de que tinha havido tramóia com os engenheiros no Barroso. É que parece que apareceram por lá outros, se calha os verdadeiros e a coisa estava a desmascarar-se.


Entretanto, o Arrebita e o companheiro, continuavam na fresca ribeira a meter para o bucho e para o bornal, agora em terras do Planalto. Todavia, quando chegaram ao Carregal, terra do Ti Moreiras, ele já estava precavido e fez-se de mula!


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Recebeu o Regedor muito bem, aceitou que as companhias se instalassem lá em casa durante os dias que fossem precisos para o trabalho das medições.


O esquema era o mesmo de sempre.


O casal do Ti Moreiras ficou para último.


Daí a dois dias já estavam arrecadados na adega presuntos e cambalhotas de salpicões e linguiças, pagas de favores.


Estiveram por lá quase uma semana.


Os dias passavam-nos nas terras, os serões a ouvir as histórias de guerra que o anfitrião fazia questão de contar na primeiríssima pessoa.

Na última noite o Ti Moreiras e uns quantos do lugar, tinham uma surpresa reservada para os artistas.


Aquela noite estava fria como navalha de sincelo e negra como breu. Era Fevereiro, cerca do Entrudo e pelo Planalto soprava um vento galelo danado. Levava orelhas, barba e o mais que estivesse ao relento. Fosca-se!


Ora, depois de farta ceia de couve penca, feijão vermelho e pernil fumado, fizeram como nos outros dias, largo serão. Só que desta vez no lugar das histórias havia chincalhão[i] e cachaça para aquecer. Já tudo meio grogue, o Ti Moreiras sai-se com esta:

 

— Ó rapazes e se fossemos aos cassapos? Deve ser novidade aqui para os nossos amigos e a noite está mesmo à feição!


— Boa ideia — disseram os amigos.


Mesmo os falsos engenheiros ficaram entusiasmados. Só não sabiam o que eram cassapos.


— É surpresa, vocês vão ver. Haveremos de fazer uma tainada do catano amanhã!


— Assim seja — concordaram os engenheiros.


Foram então combinadas e distribuídas as tarefas. O Ti António Moreiras e os vizinhos, conhecedores do terreno e dos carreirões que os cassapos trilhavam para se alimentarem à noite, ficaram com a missão de os tocar até às embocaduras dos sacos, aí os engenheiros, em silêncio, colocar-se-iam cada um com seu saco de serapilheira bem aberto, para que os bichos acossados entrassem.

 

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— Não tem nada que saber, os senhores engenheiros vão ficar, um na Ladeira junto ao toco das raposas e outro nos Cáximos, junto à poça, de saco aberto no meio do carreirão, por onde eles hão-de passar. Como é de noite e eles vêem mal entrarão nos sacos. Têm é de ficar caladinhos para que não se assustem e tornem para trás. Nós vamos à volta e tocamo-los até aos senhores. Logo que entrem, fazem o favor de fechar bem o saco e aguardarem-nos para que lhe tiremos o pio.


— E os bichos mordem? — perguntaram em uníssono os engenheiros.


— Qual quê, são mansos como cordeiros, vão é ser mordidos por nós na janta de amanhã. Vamos?


Lá foram serra fora. Os aldeãos acautelados de samarra, boina galela e varapau para tocar os cassapos, os engenheiros, corpo bem-feito e saco de serapilheira às costas.


O senhor engenheiro Teodoro ficou no cimo do Belão, na Ladeira entregue a um carreirão onde corria um briol de tralhar a medula dos ossos, o Torcato ao lado da poça do Cáximos, já em carambelo pelo sereno da noite.


Puseram-nos em posição, aconselharam silêncio e foram tocar os cassapos, evidentemente para as mantas quentinhas e fofas de suas camas.


Os engenheiros estiveram à espera até de madrugada. Enregelados!


Os cassapos não apareceram.


Quando se deram pela tramóia, sebo nas canelas e a butes para Chaves!


Largaram montadas, salpicões, linguiças e presuntos.


Não deixaram o próprio canastro porque não foram audazes ao ponto de reclamar os pertences!..


Até hoje, nunca mais ninguém os viu pelo Planalto.



Benditos sejam os cassapos e mais quem nos inventou!





[i] Jogo de batota com cartas.

Gil Santos

 

 

 

 


publicado por Fer.Ribeiro às 12:00
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Sexta-feira, 23 de Abril de 2010

Discursos Sobre a Cidade - 95 - Por Gil Santos

 

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A LAVADURA

 

Seriam umas quatro da tarde. O sol de Março, coado por cirros de cristais de gelo, ainda não fazia quente aquele início da Primavera. Soprava no Planalto um vento galego gelado.

 

— Parece que pariu uma galega, Ti Maria! — Grunhia o Adelino Beiças, tralhado de frio, à passagem pelo forno do povo. Vinha de cá botar o gado do lameiro do Belão.

 

— Aqueça-se aqui um cibo home!


Que não podia, que tinha ainda muitos afazeres.

 

Era véspera de Ramos. Tempo de cozer os folares para a Páscoa (1). Este ano, a festa da Ressurreição era temporã. Ninguém gostava muito que assim fosse, pelo temor que causava o adágio: “Páscoa em Março, muita fome e muito mortaço”. Mas nem por isso deixava de se cozer o bolo típico do Planalto, o folar. Fazendo jus à tradição, botava-se a massa recheada por nacos de carne gorda da pá nos alguidares de barro preto de Nantes que, corados pelo forno de lenha, faziam a alegria e a fartura das casas, na benzedura do compasso. Porém, o forno tinha de ser escalado. A aldeia era grande e todos faziam questão de cozer por essa ocasião.

 

Nesse dia, calhou a vez à Maria Pataloa. Mocetona casada e ainda na casa dos vinte, começara a lida cedo. Uma grosa de ovos de galinha pedrês, meio salpicão, umas três linguiças, um troço bom de carne da pá, um cibo de presunto e uns doze quilos de farinha triga, os ingredientes. Era preciso bater bem a massa para os fazer azadinhos, o que não era tarefa muito fácil. Assim, invocou a ajuda da comadre Quinhas. Pelas duas da tarde os folares já fermentavam no estendal contíguo à masseira. Acenderam o forno com umas fronças secas de giesta piorneira para que pegasse bem. À porta, dois carros de lenha cortada na véspera pelo Zé Patalão haveriam de pôr branco o tijolo burro da fornalha, sinal de que estava pronto para cozer. Pelas quatro da tarde, lá entraram os folares no forno, com a benzedura do costume: “Cresça o pão no forno e os bens pelo mundo todo. Um Pai Nosso e uma Ave-Maria, cresça o pão pela freguesia.”


Ao canto da casa do forno, era costume estar um balde de folha com lavadura que servia para recolher as aparas da carne e as sobras da massa. Naquele dia estava cheio. Água, farelo, barredura dos pratos e os cibos das aparas da carne dos folares, davam à mistela um aspecto que só os dois requitos da Quinhas, cevas no próximo Natal, haveriam de gostar.


Pelas seis da tarde estavam cozidos os folares. Ficaram bons! Exalavam um aroma irresistível que aguçava o apetite a qualquer um. Às tantas apareceu por lá a Rosa Milheira, uma moçoila de vinte e cinco frescas primaveras, casada há cinco meses e prenhe de sete.


— Ó Ti Pataloa, vossemecê desculpe, mas cheirou-me tão bem aos seus folares, que me deu a gana de lhe pedir um cibo! É mais para o menino não nascer de lábio rachado ou eu não mober, não é para mais nada!.. Andar de apetites, sabe vossemecê como é!..


Claro que a Maria Pataloa não queria responsabilidades nem pesos na consciência. Vá que acontecesse alguma coisa má à vizinha e depois o que haveria de dizer o povo?!..


— Claro Rosinha, não seja por isso! Toma lá um carôlo deste mais cozidinho.


E lá foi a moça toda contente a rilhar o pedaço do folar.


— Ó comadre, olhe que nunca acreditei muito nestes desejos das grávidas — comentava a Quinhas com desdém.


— Vá-se lá saber, pelo sim, pelo não!..


— Não lhe apeteceu a ela um bocado da lavadura dos reco, ali do balde!.. Ora essa, está bem está!..


Isto passou.


Daí a uns bons cinco anos a Quinhas emprenhou. Foi uma alegria uma vez que as más línguas já diziam, à boca pequena, que para não engravidar em três anos de casada é porque era matchorra!


A Quinhas não cabia em si de contente. Peneirava-se pela freguesia de bandulho empinado para que não restassem dúvidas do seu estado. Que todos vissem que afinal era boa fêmea!


Andaria de seis meses quando, numa tarde, foi visitar a comadre Pataloa. Entrou casa adentro e proferiu a saudação da praxe:


— Nosso Senhor a salve, comadre!

— Salve-a Nosso Senhor.


Conversa puxa conversa e a atenção da Quinhas cada vez se fixava mais num canto da cozinha onde era costume estar o balde da lavadura. Bem tentava desviar de lá o interesse, mas não o conseguiu por mais que se esforçasse!

Não resistiu.


— O Ti Maria, vossemecê desculpe…


Dirigiu-se ao balde e desviando com as mãos trémulas o farelo que boiava sobre a gordura da tona, espetou as ventas no líquido e sorveu duas boas goladas para espanto da comadre que, de olhos esbugalhados, nem queria acreditar!


— Foi castigo! — Pensava a Pataloa aturdida!

— Ai comadre, não resisti! Apetites das grávidas, sabe como é!..


A verdade é que daí a uns três meses nasceu o pimpolho. Um rapagão! Forte como o granito do Brunheiro e escorreito como um touro de cobrição.


Vá-se lá saber se foi da lavadura ou se não foi!


O certo é que daí em diante as comadres passaram a crer piamente nos desejos das mulheres grávidas. Bem… não seria para menos!

Ele sempre há cada uma!

 

Gil santos

In “Ecos do Planalto – estórias”, adaptado

 

 

 

(1) - Para se saber quando calhava o Domingo de Páscoa, após o Entrudo contava-se cada Domingo assim: Ana, Magana, Rebeca, Susana, Lázaro, Ramos, na Páscoa estamos.


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Sexta-feira, 19 de Março de 2010

Discursos Sobre a Cidade - 90 - Por Gil Santos

 

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CHICO SANTO CRISTO

 

 

Gil Santos

 

— Viva a pátria e chova arroz!.. — vociferava o Chico Santo Cristo quando o desassossegavam.

Oriundo de uma família de renome, Francisco Piçarra, ficou mole do miolo(1) Culpa de um graúdo desgosto. Muito avarento, entesourava toda a riqueza no xaragão(2) de palha centeia em que dormia. Ganhava bem no negócio de passamanarias que geria na rua das Longras. Tinha porém o vício de, pelo final da tarde e após o encerramento da loja, se enfrascar, quase todos os dias, na Adega do Faustino. Era um inveterado copofónico (3)

Certa ocasião, o Fausto Vaqueiro, bancário do Sotto Mayor e colega da copofonia,(4) conhecendo-lhe a manha da avareza, convenceu-o a depositar a riqueza no seu banco. Que temesse os incêndios, os ratos, ou dos larápios. Que qualquer desgraça o podia pôr na miséria! Que pensasse bem!.. Depois de muito bater no ceguinho lá o fez crer no milagre da multiplicação dos rendimentos.

Foi para casa. Durante o fim de semana não fez mais nada que não fosse registar numa longa lista, o número de série de cada uma das notas que retirava do enxergão. Na Segunda-feira, foi ao banco, com um saco de pano repleto, entregar o papel (5) ao Vaqueiro. Depositou-lho a prazo em regime de juro composto.

A coisa passou.

Daí a uns meses, beberricando calmamente um traçadinho(6) na taberna da Travessa do Olival, para matar a sede de uma quente tarde de Verão, alguém o chamou à atenção:

— Olha lá ó Chico, tu não puseste o carcanhol(7) no Sotto Mayor?

— Pus. Está seguro e rende juros!

 

— Pois, fizeste uma boa merda! Meteste-o no cu ao Vaqueiro e agora as tuas notinhas andam por aí à cria nas mãos de quem calha! Vês aquele magano a pagar a rodada, vai fazê-lo com uma das tuas notas!

Ficou em pânico… Foi-se ao balcão…

— Ó Eduardo, mostra-me essa nota de cem que acabas de encafuar na gaveta…

Puxou do bolso o extenso rol dos números de série e conferiu…UG 02913!

Não é que a puta da nota fazia parte do cadastro!..

Afinal sempre era verdade, as suas notinhas andavam por aí ao Deus dará,(8) em vez de estarem guardadas no cofre do banco.

— Que gastassem o que era deles, esses filhos de um cão.

O cabrão do Vaqueiro havia de lhas pagar!

Foi-se ao banco e fez um escabeche do arco da velha. Que queria as suas notinhas uma por uma…

Perante a intransigência do homem em manter o depósito, tiveram que lhe devolver o dinheiro até ao último tusto.(9) Ainda assim não foi fácil convencê-lo a aceitar notas que não eram das suas!

— Que se fodesse o Vaqueiro a mais os juros. O papel havia de ir novamente para o xaragão. As pulgas e os percevejos não iam ao Faustino!

Contudo, aquela ideia do incêndio, dos ratos e dos gatunos não lhe saía da cabeça.

Eureka!

Foi ao Moucho e comprou uma lata de chapa. Daquelas que os merceeiros usavam para meter o café moído. Embrulhou as notas num plástico duro. Encheu a lata com elas, muito bem acamadinhas. Tapou-a com a sampa (10) redonda e selou-a com cera derretida para que não entrasse a humidade. Procurou no quintal um lugar maneirinho para a enterrar. Cavou um calabouço de metro e meio e encafuou-a lá. Aterrou. Por cima colocou um grande calhau, para marcar o sítio. Sentiu-se aliviado. Tinha o pé de meia (11) a salvo de bancos, incêndios, ratos e ladrões.

 

Passados uns três anos, o senhorio da sua casa quis aliená-la. Ele comprá-la. Estava em situação privilegiada para negociar e além do mais tinha capital. Discutiu o preço. Marralhou (12) quanto pôde. O negócio foi fechado em trezentos e cinquenta contos de réis, a pagar no acto da escritura. No dia anterior a esse acto formal, foi-se ao quintal de enxada em punho. Vai de abrir o buraco. Lá estava o tesouro. Intacto?..

A Lata, apesar de enferrujada, mantinha a forma original... Porém, quando retirou a cera e a destapou, das notas só farelo!..

Ficou sem pinga de sangue!

Sem dinheiro e desfeito em lágrimas, abortou o negócio e mudou de casa. Guardou religiosamente as cinzas, como se dos restos fúnebres de um ente querido se tratasse.

Daí por diante passou a fechar mal a gaveta.(13) Refugiava-se no vinho para esquecer. Era cada cadela!

Apesar de tudo, ficou-lhe uma ténue esperança num milagre do Santo Antoninho, de quem era afanado devoto. Os amigos convenceram-no de que rezando ao advogado das coisas perdidas, era capaz de se ajeitar qualquer coisinha! Então era vê-lo, cheio de fé, ajoelhado todas as tardes, antes da missa no Faustino, a debitar o responsório,(14) na igreja de Santa Maria Maior.

 

“Se milagres desejais, recorrei a Santo António

Vereis fugir o demónio e as tentações infernais.

Recupera-se o perdido.

Rompe-se a dura prisão,

E no auge do furacão cede o mar embravecido.

Pela sua intercessão, foge a peste, o erro, a morte,

O fraco torna-se forte, e torna-se o enfermo são.

Todos os males humanos se moderam, se retiram,

Digam-no aqueles que o viram, e digam-no os paduanos.

Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Rogai por nós, bem-aventurado António

Para que sejamos dignos das promessas de Cristo”.

 

Nunca resultou, para sua infelicidade e das notinhas que continuaram em pó.

 

Morava, agora, para as bandas de Santa Cruz. Para além das tardes, passava também as noites a beberricar na dita Adega. Quando a altas horas regressava a casa, ao passar perto do Libório, numa encruzilhada que tinha umas alminhas iluminadas noite e dia por mortiças velas de estearina e decoradas com desfolhadas rosas de plástico, não deixava de se descobrir e cumprimentar, mui respeitosamente:

— Boa noite alminhas!

As alminhas quase sempre retribuíam:

— Boa noite Santo Cristo. Que Deus tenha de ti dó e te ampare por esses caminhos da vida!

 

Uma noite, depois de enfardar uns valentes copázios, acompanhados de umas rachas de bacalhau da peça para puxar à pinga, não mediu a distância a uma candeeiro de iluminação pública e esbarrou-se escontra ele. Esmurrou o focinho todo!

— Pouca sorte!

O candeeiro não se queixou.

À medida que o sangue se soltava das ventas, ia sendo limpo pelo lenço de cinco pontas.(15) Chegou a casa já com o sangue tralhado (16) pelo frio da geada. Foi para a casa de banho, lembeu-se (17) e foi curar a cardiela (18) para a cama. Na manhã seguinte, sua esposa Pimponata, deu com um penso rápido colado no espelho, por cima do lavatório.

— O que teria acontecido?

Só percebeu o fenómeno quando viu o nariz do marido todo esmurrado!

— Borrachão!..

 

Numa outra ocasião meteu-se-lhe na cachimónia (19) que haveria de voar como os pássaros. Documentou-se sobre as técnicas de voo e os truques da aeronáutica. Pareceu-lhe tudo muito complicado. Mas, um dia qualquer, nas suas investigações, leu um texto da mitologia grega sobre a lenda de Icaro.

 

“Icaro e seu pai Dedálo, presos num labirinto na ilha de Creta, decidiram construir um par de asas para cada um, para se evadirem. Recolheram penas de gaivota e cera de abelha e montaram admiráveis asas.

Dedálo aconselhou o filho a que não voasse muito alto. Que não se deixasse entusiasmar com as belezas que iria admirar das alturas. Icaro cegou-se e rapidamente esqueceu o conselho de seu pai.

E Subiu, subiu, subiu…

Próximo do Astro Rei, o calor fez derreter a cera que prendia as penas.

As asas desfizeram-se e Icaro, vítima da sua soberba, estatelou-se sobre o mar Egeu.”

 

Ora, o Chico Santo Cristo sonhava voar como Icaro, mas não tão alto que pudesse cair e esbandalhar-se.(20) Passou meses à volta dos galinheiros e dos pombais dos vizinhos à cata de remiges. Quando lhe pareceu que já tinha as suficientes, construiu uma estrutura em madeira balsa e prendeu-lhe as ditas. Asas perfeitas! Encaixavam nos braços com umas correias de couro.

De onde se havia de atirar?

Das muralhas do castelo? Não, tinha lá a Infantaria.

Da torre de menagem? Não, era muito alta.

Do Forte de S. Neutel? Não, era longe.

Do de S. Francisco? Também não, tinha lá a Cavalaria.

Um sítio azadinho era a capela do Senhor do Calvário em Santo Amaro.

Dito e feito!

Um domingo prantou-se nas traseiras da dita capelinha e de cima do muro amandou-se para o infinito celeste…

Não é que voou mesmo!.. Para os arames das latadas dos quintais, cinco metros abaixo.

Esconchavou-se (21) todinho! Ficou tal qual o Santo Cristo no madeiro. Nomeada que lhe ficou.

 

Mais avançado na idade, a maluqueira deu-lhe para a rima.

Fazia poesias que recitava para os amigos nas tertúlias vinhocas.

Entre muitas, retive esta, que tinha o propósito de retratar o seu fado:

 

À meia noite fui pensado

À uma hora nascido

Às duas fui baptizado

Mais valia ter morrido!

 

Às quatro andava à cria

Às cinco assentei praça

Às seis era cada nassa

No quartel de Infantaria

 

Às sete horas tive filhos

Às oito tive cadilhos

Às nove fiquei maluco

E às dez já estava caduco

 

Às onze horas me finei

Ao meio dia enterrado

A sentença do S. Pedro:

- Pr´ó inferno excomungado!

 

Viva o Santo Cristo e todos aqueles que sonhando voar, fabricam asas de cera!

 

***********

 

(1) – Com pouco juízo

(2) – Colchão

(3) – Bebedor de vinho

(4) – Dos copos

(5) – Dinheiro em notas

(6) – Vinho misturado com gasosa

(7) – Dinheiro

(8) – A sorte

(9) – Tostão

(10) – Tampa

(11) – Poupança

(12) – Discutir o preço

(13) – Diz-se de quem não tem os cinco litros (cinco sentidos?) bem aferidos.

(14) – Responso – oração

(15) – Mãos

(16) – Estancado

(17) – Limpou-se

(18) – Bebedeira

(19) – Cabeça

(20) – Desfazer-se

(21) – Partiu-se

 

 

 

 


publicado por Fer.Ribeiro às 01:53
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