Quinta-feira, 27 de Maio de 2010

Discursos Sobre a Cidade - 99 - Por Blog da Rua Nove

Texto de Blog da Rua Nove

 

(XI)

 

Verificou todos os recantos do quarto antes de pegar no envelope. Pareceu-lhe que havia sido deixado por alguém que se movimentara ali dentro para chegar apenas à mesa. Um envelope azul, de papel espesso e entretecido. Lacrado. Um envelope dos serviços, mas sem qualquer nome ou identificação exterior.

 

 

O relatório, como pensara. Abriu o envelope cuidadosamente. Já com os papéis na mão, arregalou os olhos e franziu as sobrancelhas, soltando uma risada surda. Ninguém esperaria que o contactassem daquela maneira. De facto, os oposicionistas arranjavam sempre uma forma engenhosa de comunicação. Teria sido uma das criadas?

 

 

Todas as informações coincidiam com as que recebera dos serviços. Na primeira cópia. Na outra surgiam aqueles que pareciam os verdadeiros planos. Seriam documentos fiáveis até para os serviços. Mas a mensagem cifrada estava lá. A rota do candidato, que a polícia já conhecia de antemão, e tudo o resto que desconhecia – os encontros clandestinos, os planos, os contactos privilegiados, as personalidades que o apoiavam, sem que a polícia disso soubesse.

 

 

Displicentemente, abandonou os documentos sobre a mesa. Não lhe apetecia continuar a lê-los. Precisava de dormir. Mas nunca conseguira dormir com a barba por fazer. No lavatório refrescou a cara, reparando nas olheiras que se reflectiam ao espelho. Há já muito que não se via assim, com a consciência de estar frente a frente consigo próprio. Olhava para a sua imagem como se olhasse para a de um desconhecido.

 

 

No rosto notou duas linhas fundas acompanhando as sombras do nariz, contornando as narinas e terminando quase na comissura dos lábios. Pela primeira vez apercebeu-se que estava a envelhecer. E sentiu cansaço. Um imenso cansaço interior.

 

 

Voltou-se, regressando à sala. Colocou os papéis na pasta e fechou o cadeado. Hesitou, parecendo não saber o que fazer com aquele volume. Sem muita convicção, passou a pasta da mesa para a secretária. Exausto, caiu na cama, deixando o pijama na gaveta, a barba por fazer e os cortinados abertos.

 

 

(continua)

 


publicado por Fer.Ribeiro às 10:40
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Sexta-feira, 16 de Abril de 2010

Discursos Sobre a Cidade - 94 - Por Blog da Rua Nove

Texto de Blog da Rua Nove

 

(X)

Afastando-se das imediações do forte, o inspector Bento entrou no Bacalhau vindo do Bairro Aliança e preparou-se para começar a descer a Rua de Sto. António. Nascia o dia. Uma manhã fresca de primavera, prometendo um céu sem nuvens. Lembrava-se das manhãs de nevoeiro e geada que anos antes encontrara no inverno, e a cidade pareceu-lhe outra. A pérgola do jardim fez-lhe chegar o aroma das glicínias. Quase lhe apeteceu assobiar despreocupadamente. A rapariga era um pedaço. Pena era a criança, mas sempre serviria para lhe evitar outras complicações.


Por momentos esquecera o assunto que ali o trouxera. Aprumou-se quando se apercebeu que já havia gente nas ruas e começou a caminhar mais devagar. Queria dar a impressão de vigilância apertada e atenção redobrada. Queria que o vissem como alguém que por ali andava àquela hora por dever profissional. Omnipresente e vigilante.


Já deveria ter mais informações à sua disposição. Mas precisava de dormir algumas horas. Quando chegou ao fundo da rua estranhou o largo à sua esquerda. Estava habituado às arvores e ao gradeamento do antigo mercado, à agitação das gentes e aos sons que dali vinham. O Arrabalde parecia-lhe agora uma praça sonolenta, à espera de acordar com a chegada dos oficiais de justiça e as zaragatas barulhentas dos litigantes.


À entrada da Rua 28 de Maio amontoava-se uma meia-dúzia de pessoas, esperando a partida da carreira de Braga. Gente ensonada, crianças aninhadas entre gigas e sacos, um ou outro animal de criação. Entrou no hotel quando alguns hóspedes já saíam. Todos o saudaram tirando o chapéu, mas ninguém parou para o cumprimentar. Dirigiu-se para a sala de refeições, onde tomou o pequeno-almoço numa mesa de canto. Sozinho, com olhares e ademanes de afectação e superioridade.


Subiu depois para o quarto, cruzando-se com as criadas que tratavam das arrumações. Deitou o olhar a uma, deu um piropo a outra. Sorridente e seguro entrou na habitação. Perdeu o sorriso quando se apercebeu que alguém lá tinha estado e que havia um envelope sobre a mesa.


(continua)

 



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Sexta-feira, 12 de Março de 2010

Discursos Sobre a Cidade - 89 - Por blog da Rua Nove

Texto de Blog da Rua Nove 

 

(IX)

 

Num impulso, o inspector deixou o clube, não ouvindo as boas-noites do barman nem reparando no sorriso irónico que acentuava aquelas palavras.

 

Viu ao longe a silhueta que desejava, subindo a Rua Direita. Iria certamente pelo caminho mais plano, seguindo pelo Anjo e pelo Bacalhau, evitando assim as duas ladeiras que cruzavam a Rua de Sto. António. Mesmo ao longe, os braços levantados para segurar a  criança mostravam umas ancas generosas e deixavam adivinhar uma cintura fina.

 

Acendeu um cigarro e tossiu levemente. Por entre o primeiro fumo, notou que ela se voltara e o vira. Pareceu-lhe que abrandara o passo. Já no Bacalhau voltou-se novamente. O olhar interrogativo que perpassara por entre os longos cabelos acabou por desaparecer, oferecendo-lhe o rosto agora um leve sorriso.

  

Seguiu-a até à Lapa. Aí viu que se dirigia para uma casa da muralha, subindo umas estreitas escadas de pedra. Morava num primeiro andar. Aguardou que entrasse, enquanto acendia outro cigarro. Viu as luzes que se acendiam e o seu vulto passando de janela em janela.

 

O ar cálido e o silêncio da noite fizeram-no olhar para o céu, à procura da lua. Em vão. Deveria ser noite de lua nova, pensou. Sim, disse para consigo, sim, a última lua cheia havia sido a 25 de Abril... Era uma das suas manias obsessivas. Decorava datas e ocorrências registadas em publicações como se fosse editor de almanaques. Alguns subalternos, em conivente segredo, até lhe chamavam o inspector Borda d'Água.

 

Quando olhou de novo para as janelas, viu as luzes apagadas, embora lhe parecesse que um vulto se movimentava ainda pela casa. Notou depois a ténue luz que se espraiava pelas escadas. E viu a porta aberta. 

 

"Sei o que fazes", foi a única saudação que recebeu ao entrar. Surpreendeu-se mais com o rosto do que com o desassombro da rapariga. Era tão jovem! As mãos que se estendiam apertaram as suas, até que mãos, braços e corpos se estreitaram num abraço.

 

Acordou de madrugada com um choro de criança. "Tenho de ir amamentar o bébé", sussurraram-lhe ao ouvido. Quando regressou, a rapariga  encontrou a cama vazia.

 

(continua)

 


publicado por Fer.Ribeiro às 01:37
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Domingo, 27 de Dezembro de 2009

Discursos Sobre a Cidade - 78

 

Texto de Blog da Rua Nove

 

O Necas era um trampolineiro excêntrico que vivia na Madalena e cuja fama chegara a todos os cantos da cidade e subira a cada recanto das aldeias de montanha.

 

Naquele mês de Dezembro, em que o Tâmega já se espraiara pelo Caneiro, todos os que o conheciam recordavam a sua façanha de há anos atrás. Entusiasta do nimas, não perdia uma sessão no Salão-Maria, fosse qual fosse o filme, fizesse o tempo que fizesse. Sozinho ou acompanhado, todas as noites de cinema atravessava a ponte a assobiar, regressando a casa ora mais animado ora mais macambúzio, consoante o lado para que caía a história da película.

 

Tal como agora, naquele ano o rio transbordara e durante dias inundara parte da cidade. Era Janeiro e o ar estava gelado, mas o Necas não estivera com meias-medidas. Pegara em duas cadeiras e atravessara a Madalena e o Arrabalde como se estivesse encavalitado em duas andas. Dum lado e doutro da cidade os mirones da cheia pasmaram com a inconsciência, segundo uns, ou o atrevimento, segundo outros. Mas todos concordaram que era um acontecimento notável e ainda hoje há gente capaz de jurar a pés juntos que o Necas quase se estivera a afogar quando trocara o passo e se desequilibrara em cima da ponte, correndo o risco de cair na água que redemoinhava entre o gradeamento! (Embora, à puridade, à puridade, e como todos nós sabemos, não haja memória de o rio alguma vez haver galgado a ponte.)

 

Mas agora voltara a ser ano de cheias e aqueles que achavam que as facécias do Necas se apuravam nessas alturas estavam expectantes. O Necas, contudo, andava preocupado com outras questões. Era quase noite de Consoada e nos Codeçais, onde costumava arranjar o perú, não sobrara uma única dessas avantajadas aves. Os que haviam sobrevivido ao gôgo pareciam ter feito questão de mostrar que não sabiam nadar, deixando-se levar pelas águas.

 

Caminhava no S. Roque, lado a lado com o Tó, e era desta situação desesperada, de não ter perú para o almoço de Natal, que se lamentava quando um quáquá vibrante se fez ouvir para os lados da ribeira. "Olá! Ouviste? Cuecas! Temos para ali um parreco...", dissera o Necas enquanto desatara a correr. O Tó ainda se ria da história das cuecas (O Necas havia-lhe dito que quando ia de visita aos primos do Porto nunca se cansava de ir ver filmes todos os dias e que um dia ao sair de um cinema na Praça da Batalha e ao descer para a Estação de São Bento havia reparado na empena de um prédio onde se via o desenho de uma pata seguida de uma ninhada a fazer cuécuécué e que nem queria acreditar que aquilo era um anúncio a uma marca de cuecas, como era...) quando este voltou com um pato debaixo do braço e já com o pescoço torcido. "Está feito! Este ano temos pato para o Natal..."

 

"Então e agora?", perguntara o Tó. "Agora? Agora vais-me arranjar uma bomba de bicicleta e estás convidado para vir almoçar lá a casa no Natal. Vais provar um pato como nunca comeste. Um pato à Necas!" O Tó não se fez rogado, mas ainda lhe foi perguntando para que serviria a bomba de bicicleta. "Deixa isso comigo", foi a resposta. "O Chico Tó esteve em Macau e é que sabe. Foi ele que me ensinou um truque. Depois de depenado, separa-se a pele do resto do pato com uma bomba de ar, para que a pele fique mais tostada e saborosa e a gordura se acumule entre a carne a pele. É assim que os chinocas o comem e fica uma delícia!"

 

No almoço do dia de Natal todos aguardavam ansiosamente a chegada do pato à Necas. E de facto o pato vinha coradinho e tostado, com um aspecto apetitoso como nunca se vira num pato assado. O Necas fez questão de servir a família e os convidados. Um fino pedaço de pele, tostada e rescendente, para cada prato. "Ora provem lá isso e digam se não é o melhor pato que já comeram!"

 

E todos assentiram, dizendo que sim senhor, que era um pato memorável, melhor mesmo que muitos perús. E acrescentaram que mal podiam esperar para saborear o resto. "O resto? Qual resto?", perguntou o Necas. "Ora, a carne, o que é que havia de ser?!", responderam todos. "A carne? Nãã, népias! Só se come a pele. É assim que os chinocas fazem. A carne vai-se dar de bodo aos pobres!"

 

Um ar de surpresa e desânimo perpassou pela mesa, até que alguém conseguiu desabafar: "Ora adeus! Isto é que é o pato à Necas? Comemos a pele e ficamos a olhar para a carne? Patos somos nós, que isto é mas é pato à Népias!"


publicado por Fer.Ribeiro às 03:00
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Quinta-feira, 12 de Novembro de 2009

Discursos Sobre a Cidade - 73


Discursos Sobre a Cidade - 73, originally uploaded by frproart.
 

(VII)

 

No bar, encontrou a clientela que esperava. Três ou quatro bebedores inveterados junto do barman, um ou dois jogadores de passagem para a sala do fundo e o resto, um grupo animado de rapazes, junto das janelas, apreciando as meninas que chegavam para a missa.

 

O barman sorriu-lhe, apelando à simpatia de uma pessoa que sabia ser importante. "Boa noite, inspector Vladimiro Bento! Já há muito que não o víamos por aqui." Habitualmente renitente a que o tratassem pelo nome próprio, decidiu não dar importância de maior à saudação, acenando de volta com um baixar e levantar de queixo.

 

Em Lisboa, no serviço, já estava por demais habituado aos remoques sobre o nome que o pai, entusiasta da revolta bolchevique, havia escolhido sem a menor hesitação. Mas a paciência desaparecia quando a essa graça juntavam os trocadilhos sobre S. Bento e o apelido.

 

Aguentara isso enquanto estagiário e agente, mas agora não. O posto e a idade haviam-lhe trazido respeito entre os colegas. Só os mais velhos ainda se atreviam a insinuar uma ligação ideológica ao pai, republicano saudosista, comunista indefectível, que dissera mal da situação até à morte.

 

O criado, ali, não saberia fazer essas insinuações. Queria apenas ser simpático e prestável, procurando cumplicidade e protecção. E uma boa gorjeta. Pediu um vermute. "Aperitivos?" Que sim, que ainda não tinha jantado. Estava de costas para as janelas, mas apercebera-se da debandada. A missa já tinha começado.

 

Anos antes juraria que andariam por ali mais alferes e tenentes. Mas talvez a mudança do quartel e a distância os tivesse dissuadido. Ao virar da esquina, antigamente, ficava agora quase fora da cidade.

 

"O senhor inspector quererá comer algo?", perguntou-lhe o barman. "Podemos arranjar-lhe um bife." Deveria ter feito um trejeito de surpresa, pois a explicação surgiu logo de seguida. "Sabe, cada vez temos mais gente ali na sala ao lado, e cada vez saem mais tarde. Tivemos que começar a arranjar uns petiscos e as pessoas começaram a protestar, porque a comida só ia para o reservado..."

 

Aquiesceu no bife. Entretanto, na sala, um grupo juntara-se a um canto, discutindo um quadro. Nos anos anteriores nunca reparara nele, devia estar ali há pouco. Eram apenas curvas, quadrados, rectângulos e nada mais. 

 

Virou-se para o barman. "Zé, o que é aquilo?"

 

A resposta chegou com um sorriso escarninho. "Diz bem senhor inspector, diz bem. Aquilo. Aquilo é uma coisa que agora para aí trouxeram. É de um rapaz que está em França, filho do nosso poeta. Diz que é pintor. Mas olhe que os azulejos que tenho lá em casa metem mais vista que essa coisa. Até um pedreiro com alguns tijolos, argamassa e um pedaço de tinta fazia melhor... Olhe, para não ir mais longe, ao pé disto, até o garoto que tenho lá em casa é um artista!"

 

(continua)

 


publicado por Fer.Ribeiro às 02:13
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Quinta-feira, 4 de Junho de 2009

Discursos Sobre a Cidade - 54


Discursos Sobre a Cidade - 54, originally uploaded by frproart.
 

(V)

 

A esquadra pareceu-lhe ainda mais lúgubre e miserável do que anteriormente. Sob as luzes ténues, as fardas cinzentas tornavam-se indiscretamente visíveis e as barrigas arredondavam-se ainda mais, de forma obscena. Tudo o resto eram sombras que escondiam as reentrâncias das paredes, o salitre que nelas crescia e as baratas que se escapuliam silenciosamente.

 

Haviam-lhe dito que durante os dias mais frios de Inverno aquela penumbra abrigava também o rastejar faminto e desesperado dos ratos, conhecedores de todas as gretas e frinchas do velho soalho. Num canto, viam-se ainda as marcas das balas que um polícia novato disparara, numa tediosa noite de serviço em que decidira aproveitar os roedores para praticar tiro ao alvo.

 

Os veteranos divertiram-se com a façanha e a irresponsabilidade do maçarico, apostando logo, uma vez que a transferência era certa, em qual das esquadras mais reles iria ser colocado. Nos dias de serviço interminável, e sem qualquer história, as apostas eram o passatempo preferido, sendo apenas suplantadas por alguma lerpa ou bisca que se jogava numa arrecadação, à sorrelfa, quando a noite ia alta.

 

"Uns ignorantes e uns molengões!", pensou o inspector. Ali, apenas lhe prendiam a atenção o subchefe e o comandante. O subchefe, um finório, tinha sempre arranjinhos por fora que lhe iam arredondando o vencimento. O comandante, esse, só pensava noutros arranjinhos. Ainda novo, não podia ver rabo de saias nem deixar de apertar com tudo e todos quando lhe dava na gana, só por ruindade. "Um grande filho da puta, que se julga o maior cá da terra", na opinião despeitada de muitos concidadãos, entre os quais se contavam alguns maridos enganados à conta da sua fogosidade. "Um cobardolas de merda, que se acagaça com os superiores e os militares, e fica em sentido connosco", na opinião desdenhosa do inspector.

  

"Sabe ao que venho, senhor comandante", disse o inspector quando entrou no gabinete sem bater. O comandante virou-se, enfurecido, mas acalmou-se e levantou-se de imediato quando viu a pessoa que tinha na frente.  

  

O inspector, impassível, fez um pequeno movimento com o queixo, em direcção ao comandante. Este olhou logo para baixo e, sem qualquer embaraço aparente, abotoou rapidamente a braguilha, enquanto dizia para uma rapariga, desalinhada e estarrecida, que se quedara junto à secretária – "Podes ir. Depois falamos..."

 

(continua)

 

 

 


publicado por Fer.Ribeiro às 23:12
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Quinta-feira, 30 de Abril de 2009

Discursos Sobre a Cidade de Chaves - 49

 

(IV)

 

 

O edifício da polícia contrastava tristemente com o novo Palácio de Justiça. Casebre de dois pisos, encostado à muralha medieval, tanto podia ser tomado por um armazém em mau estado como por uma casa desabitada. Para lá chegar, quem vinha da parte baixa subia uma íngreme ladeira que, percorrida a pé, parecia um calvário consagrado à Trindade.

 

Lembrava-se do trocadilho mental que fizera da primeira vez que andara ali pelas redondezas. De um lado a polícia, de outro a igreja e bem no meio uma elegante e discreta casa de jogo. A "santíssima trindade"...

 

A princípio, chegava sempre de carro à esquadra, para manter a distância, a discrição e, quando já era conhecido, o estatuto. Insistia sempre na discrição inicial por uma questão de método, mas ali percebera que um carro numa cidade pequena nada tinha de discreto.

 

A discrição passara então a ser também uma questão de surpreender pessoas desprevenidas em situações que se revelavam ora graves ora divertidas.

 

Ainda se ria de um episódio dos anos 40. Desconhecido na cidade, depois de farto jantar, dirigira-se sozinho para a velha buvete de granito. Tinham-lhe recomendado um pequeno passeio ao luar e um bom copo de água das caldas, para sentir as geadas de Dezembro, acomodar o estômago e aclarar as ideias.

 

Chegado à fonte, por entre a névoa da água quente, deparara-se com um polícia. Fardado, mas claramente embriagado. Este não fora com a sua cara, insistindo em pedir-lhe a identificação e em saber o que andava ali a fazer àquelas horas tardias alguém que ele, representante da autoridade, nunca tinha visto em Chaves.

 

Palavra puxara palavra, levando à apresentação das respectivas identificações. Como resultado, o sóbrio e digno representante da autoridade acabara por ir passar a noite nos calabouços da própria instituição, depois de admitir que tinha exagerado na medicação para combater o frio...

 

Ao que constava, não lhe tinha servido de lição. Juntamente com um vermelhusco e rubicundo colega continuava a ser um dos típicos e inofensivos patuscos da corporação.

 

Agora, quando já se sabia que estava na cidade, costumava subir a pé, desafiadoramente, a Rua Direita, a rua de maior comércio, para então chegar à Rua da Cadeia.

 

Ao contrário do habitual, naquele fim de tarde decidira subir a Rua de S. António, passando em frente do Cine-Teatro. Queria marcar bem o território, passando também junto dos cafés mais frequentados. Ao chegar ao Largo das Freiras, antes de subir a ladeira, estacou, virando-se lentamente para trás.

 

Uma mancha enorme e avassaladora, ameaçadoramente escura, surgia ao fundo da rua, no longínquo enfiamento da ponte. O Brunheiro cercava a cidade e a Madalena. A mesma mancha escura e indistinta, verde, castanha e cinzenta, que se recortava nas tardes de inverno. Era Maio, mas aquelas continuavam a ser terras de Montenegro.

 

(continua)  

 

 

 


publicado por Fer.Ribeiro às 01:10
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