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A LAVADURA
Seriam umas quatro da tarde. O sol de Março, coado por cirros de cristais de gelo, ainda não fazia quente aquele início da Primavera. Soprava no Planalto um vento galego gelado.
— Parece que pariu uma galega, Ti Maria! — Grunhia o Adelino Beiças, tralhado de frio, à passagem pelo forno do povo. Vinha de cá botar o gado do lameiro do Belão.
— Aqueça-se aqui um cibo home!
Que não podia, que tinha ainda muitos afazeres.
Era véspera de Ramos. Tempo de cozer os folares para a Páscoa (1). Este ano, a festa da Ressurreição era temporã. Ninguém gostava muito que assim fosse, pelo temor que causava o adágio: “Páscoa em Março, muita fome e muito mortaço”. Mas nem por isso deixava de se cozer o bolo típico do Planalto, o folar. Fazendo jus à tradição, botava-se a massa recheada por nacos de carne gorda da pá nos alguidares de barro preto de Nantes que, corados pelo forno de lenha, faziam a alegria e a fartura das casas, na benzedura do compasso. Porém, o forno tinha de ser escalado. A aldeia era grande e todos faziam questão de cozer por essa ocasião.
Nesse dia, calhou a vez à Maria Pataloa. Mocetona casada e ainda na casa dos vinte, começara a lida cedo. Uma grosa de ovos de galinha pedrês, meio salpicão, umas três linguiças, um troço bom de carne da pá, um cibo de presunto e uns doze quilos de farinha triga, os ingredientes. Era preciso bater bem a massa para os fazer azadinhos, o que não era tarefa muito fácil. Assim, invocou a ajuda da comadre Quinhas. Pelas duas da tarde os folares já fermentavam no estendal contíguo à masseira. Acenderam o forno com umas fronças secas de giesta piorneira para que pegasse bem. À porta, dois carros de lenha cortada na véspera pelo Zé Patalão haveriam de pôr branco o tijolo burro da fornalha, sinal de que estava pronto para cozer. Pelas quatro da tarde, lá entraram os folares no forno, com a benzedura do costume: “Cresça o pão no forno e os bens pelo mundo todo. Um Pai Nosso e uma Ave-Maria, cresça o pão pela freguesia.”
Ao canto da casa do forno, era costume estar um balde de folha com lavadura que servia para recolher as aparas da carne e as sobras da massa. Naquele dia estava cheio. Água, farelo, barredura dos pratos e os cibos das aparas da carne dos folares, davam à mistela um aspecto que só os dois requitos da Quinhas, cevas no próximo Natal, haveriam de gostar.
Pelas seis da tarde estavam cozidos os folares. Ficaram bons! Exalavam um aroma irresistível que aguçava o apetite a qualquer um. Às tantas apareceu por lá a Rosa Milheira, uma moçoila de vinte e cinco frescas primaveras, casada há cinco meses e prenhe de sete.
— Ó Ti Pataloa, vossemecê desculpe, mas cheirou-me tão bem aos seus folares, que me deu a gana de lhe pedir um cibo! É mais para o menino não nascer de lábio rachado ou eu não mober, não é para mais nada!.. Andar de apetites, sabe vossemecê como é!..
Claro que a Maria Pataloa não queria responsabilidades nem pesos na consciência. Vá que acontecesse alguma coisa má à vizinha e depois o que haveria de dizer o povo?!..
— Claro Rosinha, não seja por isso! Toma lá um carôlo deste mais cozidinho.
E lá foi a moça toda contente a rilhar o pedaço do folar.
— Ó comadre, olhe que nunca acreditei muito nestes desejos das grávidas — comentava a Quinhas com desdém.
— Vá-se lá saber, pelo sim, pelo não!..
— Não lhe apeteceu a ela um bocado da lavadura dos reco, ali do balde!.. Ora essa, está bem está!..
Isto passou.
Daí a uns bons cinco anos a Quinhas emprenhou. Foi uma alegria uma vez que as más línguas já diziam, à boca pequena, que para não engravidar em três anos de casada é porque era matchorra!
A Quinhas não cabia em si de contente. Peneirava-se pela freguesia de bandulho empinado para que não restassem dúvidas do seu estado. Que todos vissem que afinal era boa fêmea!
Andaria de seis meses quando, numa tarde, foi visitar a comadre Pataloa. Entrou casa adentro e proferiu a saudação da praxe:
— Nosso Senhor a salve, comadre!
— Salve-a Nosso Senhor.
Conversa puxa conversa e a atenção da Quinhas cada vez se fixava mais num canto da cozinha onde era costume estar o balde da lavadura. Bem tentava desviar de lá o interesse, mas não o conseguiu por mais que se esforçasse!
Não resistiu.
— O Ti Maria, vossemecê desculpe…
Dirigiu-se ao balde e desviando com as mãos trémulas o farelo que boiava sobre a gordura da tona, espetou as ventas no líquido e sorveu duas boas goladas para espanto da comadre que, de olhos esbugalhados, nem queria acreditar!
— Foi castigo! — Pensava a Pataloa aturdida!
— Ai comadre, não resisti! Apetites das grávidas, sabe como é!..
A verdade é que daí a uns três meses nasceu o pimpolho. Um rapagão! Forte como o granito do Brunheiro e escorreito como um touro de cobrição.
Vá-se lá saber se foi da lavadura ou se não foi!
O certo é que daí em diante as comadres passaram a crer piamente nos desejos das mulheres grávidas. Bem… não seria para menos!
Ele sempre há cada uma!
Gil santos
In “Ecos do Planalto – estórias”, adaptado
(1) - Para se saber quando calhava o Domingo de Páscoa, após o Entrudo contava-se cada Domingo assim: Ana, Magana, Rebeca, Susana, Lázaro, Ramos, na Páscoa estamos.
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